segunda-feira, 22 de março de 2010

Estrada para Huelva

Que canto de solidão é este que na penumbra me aparta do vento que lá fora corre?
A dimensão aperta-se... já mal sinto a chuva, já mal vivo nesses dias de manhãs perdidas.
Já não assisto ao despontar do sol ameno que em crescendo o frio matinal vai invertendo, sereno.
Já não constato aqueles luares cheios, mais já não conheço do que a avassaladora solidão que o nada encerra.
Volvi com agravo ao antes que me consumia. Todavia, era diferente... era tão diferente.
É que... ainda que imerso nessa profunda solidão... ainda assim sentia-te... ainda que longe, ainda que em promessa, mas ainda assim, como te sentia.
Sob olhar estrelado dormitava, assobiando no silêncio e encarando aquelas enfadonhas tardes de tórrido calor e a todas aquelas rotinas cedia, aos vícios que ilusoriamente me preenchiam. O cansaço físico que ignorava, aqueles sôfregos levantares, com que do quentinho da cama saía, disposto a abarcar as rigorosas auroras matinais de Inverno... tudo isso fazia... de índole guerreira, determinada... porque tão simplesmente, assim tinha que ser.

Onde andam agora esses dias desprezados, onde continuava a respirar porque aguardava um dia melhor?

A pálida luz do dia não perfura pelas gretas das persianas, corridas em guilhotina diurna e numa simbiótica aura com os enegrecidos cortinados que cenário lúgubre encerram, para nunca mais abrirem. Nestas tardes sombrias, como se alastram esses ecos de grotesco vazio.
"Já não há forças!"
"Já não vale a pena!"
"Já nada há a fazer!"
A confusão que implode, a sonolência que consome e que ao conforto da cama me amarra, entoando esses grilhões de sangue que tão aberrantes, os dias engolem.
E assim vão vindimando, em pesada aliança com o tempo que voraz tudo devora.
Nada aqui há. O reflexo dos espelhos perturba-me. Nada neles reluz, nada ali transcende, nada ali reside. Nada mais do que sombras obscuras que a cada respirar mais transparentes ficam.
Não há mais sequer por onde olhar. Nem mais o quero sequer fazer.

É o cessar da revolta e do duelo face ao vazio que nas minhas entranhas em batalha de atrito regia. Mas até o seu alastrar agora é diminuto, pouco mais existe para consumir e o último debater da contenda sinto. "Amanhã as minhas obrigações compelem-me a acordar às 8". Esse amanhã que cedo virou ontem, resistiu a mecânicas sinalizações... o cruel relógio, 13,14,15,16 horas foi indicando, transformando o que era mais um amanhã em mais um rasgo de inexistência, um mero vaguear do ontem que se prolonga em eco de longínquo dia que passou.

Em suma, as fontes secaram perante conformação indigna. No tempo errado me deixei apresar, quando a contracção afastei e o punho alteado ergui, desafiando mundos paralelos. Tarde o fiz e ainda o não sabia... errei, ainda que sem saber onde... como eu te teria seguido e não retornado... e como teria abandonado todos os entraves que me sufocavam sem nunca olhar para trás... num tipo de partida do qual não se regressa... eu... teria sido pó espalhado pelo vento, mas sê-lo-ia ao teu lado.
Raios, eu só não precisava do teu egoísmo, não precisava de continuar a respirar sem ver o rubro sangramento do meu corpo... de tudo o resto, eu não queria essa protecção! Eu queria-te a ti, onde, quando e como tivesse de ser, trespassando quaisquer estados ou barreiras, esmagando conjunturas e evitando que a rigidez e a pressão deste mundo nos agitasse e nos atiçasse em campos opostos, minando os sentidos e a perfeição imperfeita da nossa plenitude.
Eu ter-te-ia seguido, pois agora estaria sem me sentir tão morto quanto tu e não teria derramado um enésimo do sangue cerebral, que nos gélidos espigões que lá fora se intensificam me remetem oco, vertendo encruzilhadas em sucessivos pontos de morte efectiva.
A secura deste deserto que alastra estanca as recordações do que um dia senti prometido... o toque dos teus lábios, o toque corporal, a suavidade das minhas mãos entrelaçando-se nas tuas, percorrendo cada curva tua como uma secreta investigação, misteriosa mas que os nossos olhares resolutos, fixos, calmos, tão unos assimilavam...
Aquele aconchego, aquele abraço, aquele conforto nocturno, aquela centelha de paixão que redemoinhava desde o mordiscar de orelha, ao correr do teu pescoço, àquelas puras e inocentes brincadeiras revolvendo a uma infantilidade tão doce... nada mais que pálidas fracções que deambulavam, como se ondulassem nas tranquilas ondas de beira-mar, dispersando-se...
O mar... o vento... o sol... os cheiros e os aromas, as cores que envolvem a periferia do mundo de betão e cinza que cresce e tudo consome... Oh, mas também vocês sentem de igual modo a pressão que me é comum. Quem me dera encontrar uma réstia de forças para vos fazer companhia, procurando um bosquejar último de terreno conforto, onde esta mesma ligação não seria mais do que um convergir no mundo paralelo que me absorve...

Estou só, em erosão, privando os sentidos e cada vez menos compreendendo o que lá fora decorre. E como estou cansado de observar linhas rectas e oblíquas, uma geometria desconcertante de traços, paralelas e perpendiculares numa organização tão complexa que rege a base do caos que ali impera. Não entendo porque carregam todos uma aura tão negra, porque não brilham os seus olhos... mortos, vagos, dispersos, que deambulam presos a um desconhecido agressivo que os tece em fios, manipulando-os como parcas marionetas. Estas visões bizarras, agudizam-se e é gradual a minha cisão cada vez mais profunda com o mundo que torneia as minhas formas lá fora, revirando as minhas entranhas, ferindo-as tão rudemente de tão cruel e fria forma.
Como prefiro a monotonia que me legaste a tal epíteto de macabro tom... à dor de ter perdido antes mesmo de te ter conhecido em carne. Mas a cada ténue linha de existência minha eu pude sentir-te. Compreendi-te, pertenceste-me e de igual modo fui teu e de igual modo findei: as chamas que te fizeram o corpo em cinza, de cinzento revestiram todo o meu ser. Pergunto-me tão somente se este invólucro de carne putrefacta encontrará um final semelhante ao teu... mas isso já não importa.
Nessa placa rodoviária, tingida de salpicos de sangue, do teu sangue que nessa madrugada tão vilmente verteu. Aí jazo defunto, a teu lado, retido para sempre naquele último abraço apertado, no meio da estrada, rodeados de chamas, estilhaços e corpos. Nessa mesma sepultura cujos molhados panos o rubro fluído limparam.
Mas à poeira que a nossa lápide se encontra exposta, de todo não indigna, nos continua a unir no fogo etéreo que legitima a vida.
Huelva, nunca as tuas fronteiras viram tamanha beleza... guarda-a, aconchega-a... o nada que ela vale à tua inexistência, é o tudo que fomos, sentimos, sem dúvida o tudo, para o qual vivemos.

HUELVA
15kms
2007

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